terça-feira, 5 de abril de 2016

Um dia morrerei só
e me colocarão moedas sobre os olhos
para pagar o barqueiro
transportador de mortos a quem pagarei duas moedas
e irá me levar ao outro lado
e enquanto seu barco flutuar
comigo dentro e outros tantos mortos
 rumo ao desconhecido
 terei rara oportunidade
ao barqueiro dizer
enquanto ele no leme me olha e me ouve, frio, morto, sozinho
sabendo o destino de todos os mortos que eu não sei

-sabe barqueiro, hoje olhando a margem que fica para trás
posso afirmar-te que ventura é um dia
poder carregar na minha tela de memórias
 a casa onde eu morava
e silenciosamente poder lá voltar
e entrar no quarto da minha filha
e poder perceber seu mural de fotos sobre a escrivaninha
de seus muitos amigos e momentos
e lá no meio uma foto minha com ela
abraçando-a  em seu queixinho apertando
arrancando
 dela um sorriso de criança ,

e entrar no quarto de meu filho
 ver o móbile de balão voador
que um dia ele me pediu para dependurar
sob a luz de seu ventilador abajur
que faz vento e luz

sentir a ovelhinha estampada no pijama de minha companheira
que em noites de e sem lua
estavam lá a me olhar
a me sorrir e convidar
encostando no meu corpo preguiçoso

e poder ver o sofá da sala
amassado pelo uso de corpos
neles repousados que na tv assistiam
as pipocas e pedaços de biscoitos que as crianças teimavam em eternizar
em seus cantos


e contemplar
e ver a árvore que plantei
no jardim da frente
cheia de formigas que a sobem e que  descem
o muro descascado que a morte não  me deixou repintar
e mesmo que estivesse vivo não o faria

e o aquário vazio empoeirado
abandonado
e no baú de papéis os vários cartões de dias dos pais que recebi
dos filhos meus

tenho pena de ti barqueiro,
vives a transportar mortos que lamentam somente
sem nunca poder
preparar o café da manhã de teus filhos nem tentar tirá-los da cama em dia de aula
de segunda feira


és um desventurado
mesmo que trabalhas em um rio
rio que sonho viver
rio de ti
com todo este poder
nem murmúrio de teu rio consegues ouvir nem perceber
só levas ao inferno almas
nem ao menos conheces a borboleta azul das tardes que passei
junto ao meu avô
no rio de minha infância,pescando

pobre de ti
barqueiro

se eu fosses tu
me demitiria desta desalmada função
levaria ao inferno as almas do céu
 e levaria as almas do céu ao retorno da vida

tens sorte de me encontrar
e agora sabes da minha vida
ao menos um pouco
e talvez
consigas
perceber o que ecoa da vida de meu humano

não me importa aonde vou
o que farão ou farei de mim
mas valeu a pena
terem me colocado duas moedas sobre meus olhos
para pagar-te
valeu a pena morrer
para ao menos
estas palavras poder te dizer.














© TERAPIA E VIDA
Maira Gall